texto de João Paulo Barreto
Há uma notória passagem histórica sobre a trajetória do general francês Napoleão Bonaparte (posteriormente alçado, a partir de um golpe de Estado, à posição de imperador), quando este levou sua ofensiva militar ao Egito para ocupar a região e cooptar seu exército como parte de uma ofensiva para chegar à India, país dominado pelos britânicos. Em tal passagem, que muitos historiadores chamam de lenda, aborda-se a Batalha das Pirâmides e o momento no qual, supostamente, o exército francês destruiu parte da Esfinge de Gizé, tornando o rosto da estátua desfigurado e sem nariz. Reza tal lenda que Napoleão, enfurecido diante da destruição, teria conclamado seu exército diante daquele milenar monumento como modo de refletir sobre o ato impensado de desrespeito à História ao mirar seus canhões para a onipotente, mas inofensiva, esfinge. “Contemplem milênios de História”, teria dito um raivoso Bonaparte a suas tropas.
Tal momento de fúria contra suas próprias tropas não está em “Napoleão” (2023), gigantesco épico dirigido por Ridley Scott e protagonizado por Joaquin Phoenix. Vemos, no entanto, a batalha em frente às pirâmides, quando o francês subjugou o exército otomano e dominou seu território. Vemos, também, o próprio general, na austera figura do ator de “Coringa” (2019), diante da Esfinge e de um faraó mumificado a quem tenta se igualar em uma cena repleta de simbolismo. A fala, porém, mesmo ausente aqui, ecoa na mente daqueles que conhecem um pouco da trajetória ascendente de Napoleão após a Revolução Francesa, e é ilustrada pelo roteiro de David Scarpa e pela direção de Scott de modo, se não fiel ao que a História traz (como muito tem se dito), ao menos eficiente dramática e cinematograficamente.
Isso porque o diretor de “Gladiador” (2000) optou por escalonar sua biografia de Napoleão através de suas várias batalhas travadas no caminho de sua dominação do território europeu, ampliando a intensidade de seus momentos a cada representação dos embates. Em seu primeiro ato, vemos o estrategista militar ainda galgando posições e tendo reconhecida sua inteligência bélica ao recuperar o porto de Toulon da posse britânica, em uma sequência de guerra que permite a Ridley Scott apontar o direcionamento e o tom de seu filme. À medida que sua ascensão se dá e sua relação com o modo como visa não somente a dominação territorial e econômica, mas, também, a sua eternidade como mito histórico, a frase diante da Esfinge de Gizé, mesmo que não comprovada, se torna uma definição de como Napoleão passa a enxergar sua existência.
Em paralelo ao foco direto na trajetória do general e futuro imperador, vemos os ecos da Revolução Francesa sendo apresentados por Scott e Scarpa através de um resumo dos aspectos históricos e políticos de sua narrativa. Ao abrir o filme com a famosa guilhotina em ação, vê-se situado o período imediatamente posterior à Queda da Bastilha, fortaleza onde o então Rei Luís XVI aprisionava seus inimigos políticos e que foi tomada pela revolta popular dos sans-culottes, massa camponesa sufocada pelos altos impostos pagos para manter o luxo do clero, dos nobres e de parte da burguesia. Tal evolução levou à Proclamação da República e à consequente prisão e decapitação do rei, acusado de conspiração contrarrevolucionária junto a outros absolutistas da Europa.
Um dos líderes da Convenção, movimento político radical que chegou ao poder, Robespierre assumiu o governo na França buscando conter os atos de retorno da alta burguesia ao domínio político. Tal fato não tardou muito a acontecer por conta de um desequilíbrio entre a necessária criação de leis protetoras das massas e a taxação dos ricos. Após isso, a onda contrarrevolucionária atinge o governo de Robespierre, que é deposto. Em uma frustrada tentativa de suicídio, acaba não escapando da guilhotina. Ridley Scott e David Scarpa encontram um equilíbrio eficiente entre essa necessidade narrativa de se contextualizar os bastidores políticos e históricos de sua trama para além do espetáculo visual, e o fazem mantendo um modo frenético de abordar essas sequências. A citada tentativa de suicídio, bem como a maneira monstruosa como Napoleão opta por conter uma revolta popular através de balas de canhão, desenha de maneira precisa essa balança.
De modo a humanizar a figura do general, porém, temos o arco romântico entre Napoleão e sua amada, Josephine (Vanessa Kirby). Aqui é quando Scarpa e Scott optam por criar uma forma de mesclar o citado perfil metódico e calculista do militar com seu comportamento vulgar, obsceno e quase infantil diante de uma carência afetiva perceptivelmente incômoda para si próprio. Essa opção é algo marcante em cenas nas quais o vemos ter relações sexuais com a dominadora Josephine em momentos que beiram ao cômico e patético diante da forma como um general que demonstra tamanha austeridade se desconstrói e fragiliza-se em sua intimidade. E, claro, percebe-se como a força da personagem de Josephine é explicita perante o modo consciente como consegue dominar e manipular aquela figura de tamanho poder.
Ao trazer para destaque, também, o domínio diplomático da figura de Napoleão dentro da necessidade de criar conluios entre os países aliados da França, o roteiro, mesmo que de maneira rápida e um tanto superficial, ainda consegue trazer para sua audiência mais essa face de seu protagonista. Em um filme de 2h38, é louvável notar essa maneira como o roteiro, mesmo focado nas várias sequências de guerra, ainda encontra tempo para um mínimo aprofundamento.
Mas ainda é em suas cenas de batalhas que “Napoleão” destaca o ainda firme pulso de Ridley Scott. Subestimado cineasta e operário do cinema, capaz de arriscar-se em projetos cuja constância denota seu perfil workaholic (o que, claro, leva a certa irregularidade em muitos dos seus filmes), o diretor de “Alien” (1979), “Blade Runner” (1982) e “Falcão Negro em Perigo” (2001), consegue, aos 85 anos, criar momentos únicos visualmente. São cenas coma aquela em que vemos a formação bélica em movimentos de autoproteção do exército francês durante a Batalha de Waterloo (algo que remete aos espartanos), ou quando a sequência do conflito contra os russos, em uma congelante e inóspita região, destaca mais uma vez o domínio estratégico do aqui protagonista e a sua visão matemática e calculista da guerra.
E tal visão acaba encontrando rimas com o próprio domínio de Ridley Scott dessa labuta cinematográfica que o veterano persegue há quase seis décadas. Como dito, sua dedicação constante e frequência de trabalhos nem sempre encontra a glória. Mas ainda é louvável vê-lo, após décadas, ainda se dedicando ao cinema. Como disse o próprio Napoleão: “A glória é fugaz, mas a obscuridade é para sempre.”
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.
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